A história nos mostra como tudo aquilo que não diz respeito ao modelo hegemônico dominante, isto é, o homem branco, cisgênero, hétero, ocidental, bem-nascido e em posição social de privilégio e poder, raramente é identificado e registrado como algo de importância no mundo (sim, é isso mesmo que você leu, cidadão, nem comece com “mas nem todo homem”, por favor!).
Detectando esse problema desde a infância, Bárbara Carine Soares Pinheiro, escritora, palestrante e professora efetiva da Universidade Federal da Bahia, decidiu pesquisar se existiam invenções e projetos que não fossem creditados somente a esta casta social e, para surpresa de muitos – incluindo ela mesma – Bárbada foi capaz de elencar um conjunto de realizações que compilou na obra “História Preta das Coisas: 50 Invenções Científico-Tecnológicas de Pessoas Negras”, editada e publicada em 2023.
“Este livro tem como intuito apresentar produções científico-tecnológicas ancestrais e contemporâneas em afroperspectiva, buscando ressignificar as bases intelectuais ocidentais problematizando ‘o milagre grego’ – narrativa mitológica que assenta a origem de grande parte dos saberes ocidentais à civilização grega – e pautando a primazia kemética nas bases dos conhecimentos científicos. Para tal, a partir de uma escrita escrevivente, apresento conceitos fundamentais para o entendimento deste apagamento histórico, tais como: pilhagem epistêmica e genocídio epistêmico. Bem como, destaco 50 produções científicas pretas que foram fundamentais para o desenvolvimento humano impulsionado pela ciência e tecnologia africana e afrodiaspórica. Também trago o fundamento da filosofia Ubuntu para compreendermos outras possibilidades de ser e estar no mundo, produzindo ciência a partir de outros marcadores existenciais e metodológicos”, escreve a autora na apresentação da obra.
Como explica, o projetos surgiu de sua necessidade de organizar uma espécie de inventario patrimonial divulgando invenções pretas produzidas na história da humanidade”. “Lembro que quando era criança em minha casa tinha algumas enciclopédias bonitas com aquelas capas duras vermelhas, recordo de acessar muito esses escritos com mainha, contudo não encontrava registros referentes a produções intelectuais negras, na realidade, nem sabia que existiam”, declarou a pesquisadora, trazendo como exemplo a lâmpada elétrica “que, secularmente, foi atribuída a Thomas Edison e que por um estudo detalhado da historia aparece o personagem engenheiro negro como real inventor (criada pelo cientista afroamericano Lewis Howard Latimer, wm 1882, um dos pesquisadores da empresa General Electric Company, como informa a educadora no capítulo 30 de seu livro).
Como forma de homenagem ao trabalho dedicado destes e de tantos profissionais negras e negros apagados da história científica contemporânea, o Quebrando o Controle selecionou quatro inventos criados por pessoas negras e inspirados em algum aspecto da ludicidade ou que puderam ser utilizados também no campo do entretenimento e dos jogos digitais. Por último e não menos importante, resgatamos a história de um relevante profissional cuja invenção foi revolucionária para as primeiras décadas dos jogos digitais domésticos, como o leitor verá ao final do artigo.
Mancala
“A mancala é tida como um dos jogos mais antigos do mundo; há quem chame de pai dos jogos. A primeira evidência do jogo é um fragmento de um tabuleiro de cerâmica e diversos cortes de rocha encontrados na Etiópia, no antigo império Axum datado por volta do século VI, contudo, estima-se que o jogo surgiu em Kemet há cerca de 4000 anos”, afirma a docente em sua obra.
“Como acontece com quase todos os jogos de tabuleiro […] as origens da mancala foram, em algum momento, localizadas no antigo Egito”, afirmam os pesquisadores Walter Crist, Anne-Elizabeth Dunn-Vaturi e Alex de Voogt na obra Ancient Egyptians at Play – Board Games across Borders, publicada em 2016, destacando que, “o estimado pesquisador de jogos Bell (1979:12), que baseou sua visão em parte em fileiras de buracos encontrados em ruínas egípcias, sugeriu que ele [o jogo Mancala] pode ter se originado na ‘África negra e sido levado para o Egito em uma data muito antiga'”, corroborando as impressões da autora.
Barbaba enfatiza que “Mancala é um nome amplo dado a muitos jogos matemáticos de raciocínio lógico cultivados no continente africano, que guardam entre si diversas semelhanças. Dependendo da região que o jogo é realizado ele recebe um nome diferente; são mais de 200 designações.”
Boliche
“Em 1930, próximo ao sul do Cairo no Egito, arqueólogos encontraram em um sítio arqueológico uma pista com cerca de quatro metros de comprimento, nela continham hieróglifos que descreviam práticas de
boliche similares às atuais. Nesse sítio também foi encontrada uma bola rústica de boliche, a sua datação fóssil remonta por volta de 3000 anos AC”, registra o livro das invenções de pessoas negras.
“Os antigos egípcios jogavam em um grande salão uma versão híbrida entre boliche e jogo de bola na grama. No entanto, duas pessoas jogavam simultaneamente, uma em cada extremidade de uma pista de 4 metros de comprimento”, corrobora o texto do site Ancient Pages, confirmando que “na década de 1930, o antropólogo britânico Sir Flinders Petrie descobriu diversos tipos de bolas de boliche primitivas, pinos de boliche e outros materiais na tumba de um menino egípcio de 3200 a.C. Tudo indica que os antigos egípcios praticavam uma forma primitiva de boliche e que o boliche existe há mais de 5200 anos”, afirma o site.
GPS
“Você já usou a tecnologia GPS? Se sim, agradeça a uma mulher negra chamada Gladys Mae West. Gladys é uma matemática afro-americana, nascida em 1931 em Condado de Dinwiddie. Ela teve papel fundamental no desenvolvimento e criação do GPS”, narra Barbara no livro. “O Sistema de Posicionamento Global (GPS) mudou a vida de todes para sempre”, continua.
“Em 1956, ingressou na base naval de Dahlgren, sendo a segunda mulher negra a ser empregada na instituição. Uma de suas atribuições em Dahlgren era a de coletar dados de localização espacial dos satélites em órbita e depois inserir os dados nos super computadores da base, usando um programa rudimentar para analisar elevações de superfície. Nesse trabalho a base para a tecnologia GPS é desenvolvida.”
Sim, o GPS também está nos games, caro leitor jogador. “Mogi é um jogo baseado em localização, lançado no Japão em 2003. Os jogadores de Mogi exploram seus arredores físicos para coletar itens virtuais escondidos. A interação com o mundo de Mogi ocorre por meio de um software instalado em seus celulares com GPS”, informa catálogo All the World’s a Game: The Future of Context-Aware Gaming, publicado em 2006, peldo Institute for the Future. Soa familiar? Provavelmente, sim, para os jogadores de Pokémon GO, game da Nintendo e The Pokémon Company, produzido pela desenvolvedora Niantic, Inc.
3D
Hoje é comum assistirmos no cinema aos filmes com utilização dos óculos 3D, que criam a ilusão de tridimensionalidade e nos dá “uma maior sensação de realidade e de co-participação nas cenas”, como identifica a autora. “Você sabia que os conhecimentos físicos que deram base para essa invenção foram desenvolvidos por uma mulher negra?”, pergunta em sua publicação.
“Em 1976 a Dra. Valerie Thomas descobriu que os espelhos côncavos podem criar a ilusão de objetos tridimensionais e começou a experimentar como poderia transmitir visualmente a ilusão 3D. Em 1980 Thomas patenteou seu transmissor de ilusão. Se hoje você assiste filmes 3D deve isso a uma mulher negra. Você deve isso à Valerie, que hoje na NASA tem cargo de chefia e gerencia o programa Landsat, que produziu milhões de imagens da Terra”, redigiu no texto.
Como explica Otso Määttänen na introdução de sua recente pesquisa, Creating an Immersive Ambience in Virtual Reality, de 2024, a “literatura sobre RV é relativamente abundante, visto que pesquisas vêm sendo realizadas desde pelo menos a década de 60 em alguns aspectos do tema, mas só recentemente se tornaram relevantes para o público. Décadas antes do novo renascimento da RV, os primeiros produtos de jogos de realidade virtual surgiram em 1991, na forma de uma linha de máquinas de arcade do The Virtuality Group. Depois disso, o estado da indústria se deteriorou. Com o fracasso do Nintendo Virtual Boy, o interesse em jogos de realidade virtual diminuiu. Essa quebra de interesse foi eventualmente compensada pelo aumento do interesse comercial em produtos de realidade virtual na década de 2010, especialmente após os avanços tecnológicos de empresas como a Valve e a Oculus, que mais tarde se tornou Meta.”
Se você curte games em 3D, agradeça à Dra. Valerie Thomas.
Cartuchos para consoles de games
Não menos importante para os gamers, e especialmente para os fãs dos retrojogos digitais, os cartuchos constituíram, por anos, o poder das fabricantes de games sobre o imaginário do ávido público jogador, que podia escolher a aventura para imergir no final de semana, após a visita à sua locadora nos arredores da vizinhança. Sim, o inventor por trás dessa tecnologia – revolucionária para a época – também foi um pesquisador e engenheiro de origem afrodescendente.
“Gerald A. ‘Jerry’ Lawson, foi um engenheiro eletrônico estadunidense. Hoje é reconhecido principalmente pelo trabalho no design do console de videogame Fairchild Channel F, bem como por liderar a equipe que foi pioneira na criação do cartucho de videogame comercial”, destaca a informação sobre o engenheiro, disponível no repositório Wikipedia, na página dedicada ao profissional.
“Segundo a CNET, Jerry Lawson foi um pioneiro dos jogos modernos que, sendo um dos poucos homens negros na indústria na época, liderou a equipe que desenvolveu o primeiro sistema de videogame doméstico com cartuchos intercambiáveis. Por sua contribuição nos primórdios dos videogames, Lawson foi apelidado de ‘pai do cartucho de videogame'”, complementa a informação o texto sobre o Doodle do Google em homenagem ao 82º aniversário de Lawson, comemorado em dezembro de 2022.
“Para homenagear a contribuição do engenheiro eletrônico americano para os jogos, o Google criou uma coleção de jogos interativos do Doodle para marcar o 82º aniversário de Lawson na quinta-feira. Os jogos, que remetem aos primeiros videogames da década de 1970, levam você a uma jornada por momentos-chave da carreira de Lawson e oferecem um vislumbre dos gráficos e objetivos dos jogos daquela época. Você também é convidado a criar seu próprio videogame ou editar os já existentes”, informou ainda o veículo de notícias.
“Em 2011, a International Game Developers Association reconheceu Lawson como um pioneiro da indústria por suas contribuições para os jogos. A Universidade do Sul da Califórnia também criou o Fundo Gerald A. Lawson para apoiar estudantes sub-representados que desejam cursar graduação ou pós-graduação em design de jogos ou ciência da computação. As conquistas de Lawson são homenageadas no World Video Game Hall of Fame em Rochester, Nova York”, ressalta a página do Google dedicada ao profissional.
Curiosamente, esta última tecnologia não integrou a publicação da docente baiana, que talvez tenha precisado fazer um recorte estratégico para se limitar às 50 invenções apresentadas no livro. Uma possível reedição da obra talvez possa contemplar a engenhosa criação, que muito contribui para honrar o espírito desenvolvedor e criativo da raça negra, frequentemente apagado da história, como já identificado pela própria autora.
Parte desse problema talvez resida na própria dificuldade das pessoas negras em outorgar para si o protagonismo de suas realizações, questão que torna muito mais fácil suplantar tais conquistas, como admite a escritora: “Obviamente que essa escrita não foi fácil, como nunca é para nós pessoas negras. Temos uma tendência muito grande à auto-sabotagem, por mais bem resolvidas que aparentemente sejamos. Não se trata apenas de bloqueio criativo, trata-se de uma ‘síndrome do impostor'”, confessa.
O livro História Preta das Coisas: 50 Invenções Científico-Tecnológicas de Pessoas Negras pode ser adquirido na loja virtual da Amazon, em formato físico e digital, a partir de R$ 31,00, e vale como material de consulta para ampliar nosso conhecimento sobre o inventivo arcabouço de produções dos talentosos profissionais da raça.
Abaixo, reproduzimos o Doodle de 2022, que homenageia o criador dos cartuchos de videogames.

Imagem: fotomontagem

Idealizador do projeto Indie Brasilis, ex-editor e atual colaborador do Quebrando o Controle, o jornalista se diz um Geek assumido e fanático por RPG e Dungeons & Dragons. O profissional atua desde 2007 no jornalismo de games, com passagens pelos veículos Portal GeeK, Game Cultura, GameStorming, Rádio Geek e Drops de Jogos, entre outros.