O vazio por trás da máscara
Entre todos os ícones do terror, poucos são tão enigmáticos quanto Michael Myers, o assassino silencioso da franquia Halloween. Diferente de outros vilões, ele não fala, não reage, não demonstra prazer nem arrependimento. Seu rosto é escondido por uma máscara branca e sem expressão, e talvez isso seja o que mais o assusta: a ausência completa de humanidade. Michael não precisa gritar para ser aterrorizante. Ele representa o que há de mais puro e impassível na maldade, o mal sem motivo.
Curiosamente, a famosa máscara usada por Myers não foi criada para ser assustadora. O diretor John Carpenter e sua equipe tinham pouco orçamento em 1978, então compraram uma máscara barata do Capitão Kirk, personagem de Star Trek, pintaram-na de branco, alargaram os olhos e retiraram as sobrancelhas. O resultado foi algo muito mais inquietante do que qualquer design original: um rosto humano, mas vazio. A ausência de expressão se tornou o símbolo da ausência de emoção, um rosto sem alma.
A anatomia da ausência de empatia
Na psiquiatria, o comportamento de Myers pode ser associado ao Transtorno de Personalidade Antissocial, conforme descrito pelo DSM-5-TR. O diagnóstico é caracterizado por um padrão persistente de desrespeito e violação dos direitos dos outros, presente desde os 15 anos de idade. Os critérios no DSM-5-TR são:
A. Um padrão difuso de desconsideração e violação dos direitos das outras pessoas que ocorre desde os 15 anos de idade, conforme indicado por três (ou mais) dos seguintes:
- Fracasso em ajustar-se às normas sociais relativas a comportamentos legais, conforme indicado pela repetição de atos que constituem motivos de detenção.
- Tendência à falsidade, conforme indicado por mentiras repetidas, uso de nomes falsos ou de trapaça para ganho ou prazer pessoal.
- Impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro.
- Irritabilidade e agressividade, conforme indicado por repetidas lutas corporais ou agressões físicas.
- Desrespeito imprudente pela segurança própria ou de outros.
- Irresponsabilidade reiterada, conforme indicado por falha repetida em manter uma conduta consistente no trabalho ou honrar obrigações financeiras.
- Ausência de remorso, conforme indicado pela indiferença ou racionalização em relação a ter ferido, maltratado ou roubado outras pessoas.
B. O indivíduo tem no mínimo 18 anos de idade.
C. Há evidências de transtorno da conduta com surgimento anterior aos 15 anos de idade.
D. A ocorrência de comportamento antissocial não se dá exclusivamente durante o curso de esquizofrenia ou transtorno bipolar.
Essas características refletem uma profunda falha no desenvolvimento da empatia e da moralidade. A psicopatia, conceito que se sobrepõe parcialmente a esse transtorno, descreve indivíduos que unem frieza emocional, egocentrismo e charme superficial a uma total incapacidade de sentir culpa.
Robert Hare, um dos principais estudiosos da psicopatia, autor do sensacional livro “Sem Consciência” (fica aqui uma dica de livro), descreve esses indivíduos como “predadores sociais” que sabem imitar emoções humanas sem senti-las de fato. Entendem o que é a dor, mas não a experimentam emocionalmente. É o caso de Myers: ele entende o ato de matar, mas não o significado.


A banalidade do mal
Michael Myers não mata por vingança, prazer ou ideologia. Ele simplesmente mata. Sua ausência de motivação é o que o torna tão inquietante e simbólico. O conceito lembra o que Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal” (outra dica de livro: Eichmann em Jerusalém): o mal que não vem do sadismo consciente, mas da ausência de reflexão moral. Myers age como uma força natural, um vazio em movimento.
No campo clínico, estudos apontam que pessoas com traços psicopáticos graves apresentam alterações em áreas do cérebro como a amígdala e o córtex pré-frontal, responsáveis pelo processamento da empatia, medo e tomada de decisão. Essa disfunção ajuda a explicar a ausência de medo e culpa, o que torna o comportamento frio e calculado.
O nascimento de um ícone do terror
Quando Halloween estreou em 1978, dirigido por John Carpenter, o cinema nunca tinha visto algo tão silencioso e letal. Myers não corria, não falava, apenas andava. E essa lentidão tornava tudo mais perturbador. O filme, feito com orçamento mínimo e trilha composta pelo próprio Carpenter, criou o molde do gênero slasher, no qual um assassino mascarado persegue vítimas de forma implacável. Quatro anos antes, Tobe Hooper nos trouxera O Massacre da Serra Elétrica, que já nos apresentava o gênero slasher, mas o mal ali não era tão sombrio quanto em Halloween.
Foi o nascimento de um novo tipo de horror: o mal que não precisava de monstros sobrenaturais. Michael Myers era humano e, justamente por isso, mais assustador. Sua frieza inspirou décadas de imitadores e definiu o arquétipo do “assassino imparável” que ainda hoje domina o cinema de terror.
O fascínio pelo abismo
Por que personagens como Michael Myers continuam nos atraindo? Talvez porque representem o oposto do que somos. O ser humano é movido por emoção, empatia e laços sociais. Ver alguém que age sem isso é como olhar para um espelho que devolve o que há de mais frio e incompreensível em nossa natureza.
O terror desses personagens vem do contraste. Eles não são demônios ou fantasmas, mas pessoas desprovidas de tudo o que reconhecemos como humano. Myers, como descrito por Nietzsche, é o abismo que olha de volta o medo de que, sob certas circunstâncias, o vazio também possa habitar em nós.
Checkpoint final
Michael Myers não é apenas o bicho-papão do cinema, mas a personificação da ausência de empatia e da frieza moral. Ele nos lembra do que acontece quando a humanidade desaparece, quando a emoção é substituída pela indiferença. O Transtorno de Personalidade Antissocial e a psicopatia mostram que a maldade nem sempre nasce da intenção, mas, às vezes, da incapacidade de sentir.
O terror de Halloween não vem do sangue ou da violência, mas da constatação de que, sob a máscara branca e vazia, há algo mais assustador do que um monstro: um ser humano sem emoção alguma.

José Maria Santiago, médico psiquiatra e professor de medicina, é um explorador da mente humana e um aficionado por cultura pop. Entre aulas e consultas, também encontra tempo para debater filmes, séries e games no seu podcast, o Encontroverso, onde o cérebro e o entretenimento se encontram. Especialista em fazer a ciência caber numa conversa de café e em emitir opiniões baseadas em certezas que não tem, acredita que o equilíbrio está entre a compreensão profunda da psique e uma maratona de filmes ruins bem escolhida!