Quando o espelho começa a te observar
A tecnologia nasceu para facilitar a vida, mas, aos poucos, passou a ditar o ritmo dela. O que antes era curiosidade virou hábito. E o que parecia autocuidado, em muitos casos, virou fonte de ansiedade. Smartwatches, aplicativos de monitoramento e dispositivos de performance pessoal transformaram o corpo em dado e o cotidiano em gráfico. Hoje, não basta dormir: é preciso medir o sono. Não basta caminhar: é preciso contar os passos. Não basta viver: é preciso gerar métricas de existência.
No universo de Black Mirror, a tecnologia sempre devolve uma versão ampliada da humanidade e é justamente aí que o perigo começa. O episódio Nosedive, em que as pessoas avaliam umas às outras o tempo todo, mostra como a busca por controle e aprovação pode se transformar em colapso emocional. Com os smartwatches e aplicativos de monitoramento, algo semelhante acontece: a promessa de equilíbrio vira cobrança constante.
A máquina não cansa, mas você sim
O relógio inteligente funciona 24 horas por dia, sem pausa, sem sono, sem oscilação. Mede o batimento, o sono, o estresse, a respiração e a produtividade, tudo em tempo real. E é nesse ritmo que muitos tentam acompanhá-lo, buscando responder com a mesma precisão e constância que a máquina oferece. O problema é que o ser humano não foi feito para operar em modo contínuo.
Quando o dispositivo mostra um desempenho aquém do esperado, surge a sensação de falha. Quando mostra um pico de estresse, nasce o medo de estar “piorando”. A vigilância se transforma em autocobrança, e a autocobrança vira ansiedade. O corpo passa a ser olhado como se fosse um projeto de engenharia, e o descanso, algo a ser otimizado.
A ilusão do controle total
A tecnologia promete autonomia, mas frequentemente entrega dependência. É comum que pacientes relatem aumento da ansiedade após começar a usar dispositivos de monitoramento. Em vez de relaxar, passam a observar-se em tempo real, buscando sentido em cada oscilação de frequência cardíaca ou ponto fora da curva. O smartwatch deixa de ser ferramenta de bem-estar e se transforma em uma espécie de espelho digital que nunca desliga.
O problema é que quanto mais olhamos para o espelho, mais ele nos observa de volta. O cérebro, exposto a um fluxo constante de dados sobre si mesmo, entra em um estado de alerta permanente. Cada informação vira uma possível ameaça, cada variação, um sinal de perigo. A fronteira entre o autocuidado e a hipervigilância se dissolve, e o autocontrole se torna cárcere.
O humano diante da máquina
Essa dinâmica revela um paradoxo contemporâneo: queremos ser humanos melhores, mas acabamos competindo com as máquinas que criamos. O dispositivo não erra, não sente, não cansa e, diante disso, o usuário tenta devolver o mesmo tipo de feedback que recebe. É um jogo impossível de vencer. Tentamos acompanhar uma constância que não é natural, buscando uma perfeição que pertence à lógica do silício, não à da carne.
O resultado é um tipo de ansiedade moderna, em que o sujeito tenta sentir o que o relógio sente, responder ao que ele mede e viver à altura do que ele calcula. A promessa de controle se transforma em vigilância e a busca por saúde vira um ciclo de exaustão.
Checkpoint final
A tecnologia pode ser uma grande aliada quando usada com propósito, mas nunca deve substituir o olhar humano sobre si mesmo. O corpo não é uma planilha e a mente não é um aplicativo. O descanso, a oscilação e a imperfeição fazem parte da vida tanto quanto o movimento.
Talvez o maior aprendizado venha justamente de perceber que não precisamos acompanhar a máquina. Ela trabalha sem parar porque não sente. Nós sentimos, e é isso que nos torna humanos. Em tempos de espelhos digitais, talvez cuidar da saúde mental seja, antes de tudo, lembrar-se de descansar o reflexo.

José Maria Santiago, médico psiquiatra e professor de medicina, é um explorador da mente humana e um aficionado por cultura pop. Entre aulas e consultas, também encontra tempo para debater filmes, séries e games no seu podcast, o Encontroverso, onde o cérebro e o entretenimento se encontram. Especialista em fazer a ciência caber numa conversa de café e em emitir opiniões baseadas em certezas que não tem, acredita que o equilíbrio está entre a compreensão profunda da psique e uma maratona de filmes ruins bem escolhida!