Em 2009 uma notícia agitou a indústria de jogos digitais no Brasil: a francesa Ubisoft, dona de franquias como Assassin’s Creed e Tom Clancy’s Rainbow Six, adquiriu o estúdio brasileiro Southlogic de Porto Alegre, desenvolvedores de Wedding Designer (para Nintendo DS), os simuladores de caça Trophy Hunter e Deer Hunter, além do clássico dos anos 90 Guimo. Parecia o tradicional movimento de peixe grande engolindo os pequenos. Deu o que falar.
Corta para 2025 e a notícia que agita o mercado no momento é a aquisição de 25% da francesa Ubisoft pela chinesa Tencent, num acordo de aproximadamente €1,16 bilhão. Agora é a baleia engolindo o “peixão”. Também está dando o que falar.
E o tsunami não para por aí: em um movimento meio obscuro, o fundo soberano da Arábia Saudita acaba de adquirir a norte-americana Electronic Arts (EA), envolvendo o próprio governo saudita e o genro do presidente Trump. Cá entre nós, para brasileiros antenados, parente de presidente validando transações esquisitas na área de games nem é novidade.
Enfim, o mercado global de games vive uma onda de fusões e aquisições e parte dessa maré está redesenhando quem manda, para onde vai o dinheiro e qual será o impacto para desenvolvedores independentes. Esses dois vetores principais chamam especialmente a atenção porque impactam empresas tradicionais, franquias históricas e promovem transformações profundas nos e-sports (principalmente).
Tencent e Ubisoft: parceria estratégica
Em 2025 a Tencent fez um movimento de peso: investiu €1,16 bilhão para adquirir 25% de uma nova subsidiária da Ubisoft, avaliada em cerca de €4 bilhões. Esta unidade foi criada para concentrar três das franquias mais importantes da Ubisoft: Assassin’s Creed, Far Cry e Tom Clancy’s Rainbow Six.
O objetivo declarado da Ubisoft é tornar esses IPs “evergreen“, ou seja, ecossistemas de jogo duradouros, multiplataforma, com mix de experiências single-player, multiplayer e até componentes free-to-play. Com isso, a Tencent ganha participação estratégica em três marcas centrais, enquanto a Ubisoft assegura um fôlego financeiro importante para reduzir dívidas e investir em inovação.
O impacto desse tipo de aquisição é duplo: para a Tencent, reforça ainda mais sua presença global na indústria de jogos (ela já controla ou investe em dezenas de estúdios e empresas ao redor do mundo). Para a Ubisoft, significa recuperar parte de seu poder de fogo e dar mais estabilidade para franquias caras de manter.
Fundo soberano árabe e os e-sports: a “terceira via” de poder
Enquanto a Tencent expande sua rede global, há uma outra força emergente no tabuleiro: os fundos soberanos árabes, especialmente o Public Investment Fund (PIF) da Arábia Saudita. Recentemente, o PIF anunciou a compra da Electronic Arts (EA) por cerca de US$ 55 bilhões, segundo reportagens recentes.
Esse tipo de investimento reflete uma estratégia maior: usar o ecossistema de games para diversificar a economia local, ganhar influência cultural e tecnológica. Além disso, o PIF já vem apostando pesado em e-sports, transformando jogos não apenas em produto de entretenimento, mas em ativo estratégico geopolítico e econômico.
Essa aliança entre capital soberano e indústrias de games tem potenciais positivos, como expansão de infraestrutura, mais dinheiro para desenvolvimento, mas também tem riscos: controle externo sobre IPs globais, pressões para atender interesses políticos ou ideológicos, e possível influência nas narrativas e no modelo de negócio dos jogos.
E agora? Para onde vai esse futuro de concentrações?
Seria o caso de perguntarmos algo como “é mesmo necessário que o mercado seja gigantesco?”.
A consolidação promovida por gigantes como Tencent e fundos soberanos pode ter consequências ambíguas para o desenvolvimento de jogos. Mais investimentos: franquias consolidadas podem receber mais recursos para crescer e experimentar. Estabilidade financeira: empresas tradicionais ganham fôlego para novos projetos, evitar dívidas massivas ou cortes drásticos ou mesmo mudanças de humor do mercado. Acesso a mercados: parcerias globais podem abrir caminhos para que jogos atinjam regiões antes inacessíveis.
Mas não podemos deixar de lado certas questões. Centralização de poder: poucos atores dominam estúdios, IPs e decisões estratégicas. Pressões comerciais ou políticas: a influência de investidores poderosos pode limitar a liberdade criativa ou direcionar conteúdo para agendas específicas. Risco para o indie: desenvolvedores menores podem ter dificuldade para competir ou sobreviver num mercado dominado por gigantes bem financiados.
No balanço geral, esse momento de aquisições é inequivocadamente ambivalente. Por um lado, a injeção de capital e os investimentos estratégicos têm o potencial de impulsionar crescimento, inovação e sustentabilidade para grandes franquias. Por outro, existe o risco de que o mercado fique cada vez mais concentrado, com vozes menores sendo silenciadas ou empurradas para nichos extremamente estreitos.
Para o desenvolvedor independente brasileiro, esse cenário pode ser tanto ameaça quanto oportunidade: ameaça, porque a competição e os recursos estarão cada vez mais centralizados; oportunidade, porque, dependendo da estratégia, pode haver espaço para parcerias, investimento externo ou até para atrair atenção de grandes fundos internacionais.
No futuro, o desafio será encontrar um equilíbrio para permitir que grandes investimentos façam a indústria crescer, sem sufocar a diversidade de criadores, sem reduzir os jogos a ativos financeiros e sem transformar cada IP num negócio para os mais ricos.
Se o mercado global de aquisições for conduzido com ética, visão de longo prazo e respeito pela comunidade criadora, pode sim ser um motor positivo. Se for apenas uma corrida por capital e controle, corre o risco de se tornar uma fábrica de monocultura lúdica – uma nova bolha se formando.
E aí, quem vai ganhar? Depende de quem joga e de quem investe.
Por mais moderno, novo e inovador que o mercado de games seja, na era da comunicação instantânea a gente só precisa de um momento de deslize, na hora errada ou com o tom errado, para ver algo aparentemente bem estruturado ruir até o quase nada. A indústria do cinema tem passado por isso e para constatar, basta ver o que acontece com um filme que fica marcado como lacrador.
Os games estão associados umbilicalmente à internet e mesmo que não padeçam do mesmo radicalismo de outros setores, como o político por exemplo, basta uma decisão burocrata de um país desavisado e tudo pode ir por água abaixo. Basta ver os estragos recentes dos casos AWS e Cloudflare, além do apagão cibernético de 2024 e o corte de cabos submarinos de 2025.
Como vovó já dizia: prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. Principalmente para os peixes pequenos.
Game Designer formado em Desenho Industrial e Comunicação Visual, em 1981 pela PUC/RJ. Foi diretor técnico e editor da revista Micro Sistemas de 1983 até 1995. Produtor do site TILT online desde 1996. Autor de vários jogos para computador, tais como Amazônia, Serra Pelada, Aeroporto 83, Angra-I, Xingu, Resgate na Serra do Roncador, Pedra Negra, e muitos outros. Criador das ferramentas de produção e programação de jogos: Sistema Editor de Adventures, Zeus, Micro Aventuras e Projeto Gênesis.