Antes de adentrar o assunto é preciso contextualizar o histórico deste evento, para entender melhor minha análise. De 2012 até 2019 aconteceu em São Paulo um evento chamado BIG Festival (Brazil´s Independent Games) alardeado como o mais importante festival de jogos da América Latina. E de fato era.
Na sua essência, o BIG era um encontro de desenvolvedores de jogos digitais, ou apenas devs, centrado em três pontos: devs mostrando seus novos jogos para outros devs (numa espécie de concurso onde o público também votava), devs palestrando sobre como fazer games para outros devs e devs tratando de negócios com outros devs ou empresas interessadas. Portanto um evento de devs para devs ou, falando mais modernamente, um evento indie raiz.
Cereja do bolo: o evento, além dessa ideia de família dev, era gratuito para entrar e o preço cobrado aos expositores era realmente muito baixo, já que a maioria estava começando no ramo. Turbinado por ajuda governamental, principalmente municipal e estadual, o BIG recebia também devs estrangeiros, o que contribuía ainda mais para o relacionamento Brasil e resto do mundo. Era um evento relativamente pequeno mas de importância gigantesca.
E como todo bom evento, todos os anos rolavam tretas entre os devs e os organizadores, mas afinal, essa é a essência da grande família se reunindo uma vez por ano, não é mesmo?
Durante a pandemia (de 2020 a 2022) ocorreram BIGs virtuais e em 2023 teve a volta do evento presencial ampliado. Em 2024, num esforço de sobrevivência, o BIG se junta ao Grupo Omelete (responsável por eventos como CCXP e Anime Friends) e com a Koelnmesse, a empresa que organiza a Gamescom na Alemanha e em Singapura, daí o nome Gamescom Latam (representando a América Latina). O BIG passou a se chamar Best Internacional Games Festival e o indie (quase) desaparece da cena.
Corta para 2025 e lá vamos nós, rumo à alardeada “edição latina do maior evento de games do mundo”, realizada no Anhembi. Cuidado com as palavras e seu significado: de fato a Gamescom é um evento grande na Europa, mas a sua correspondente latina está longe de ser o maior evento aqui nas américas. Acontecer no Anhembi reforça essa ideia de grandeza, mas o agora chamado Distrito Anhembi, totalmente reformulado, é na verdade um sistema de cinco sub pavilhões modulares e a Gamescom nem de longe utilizou todos os cinco.
Ao entrar no pavilhão tive duas sensações boas, em termos de eventos: não teve estridência sonora (como em outros eventos de games) e teve grandes espaços para circulação. Quanto ao som, em parte pode ser a nova acústica do pavilhão ou mesmo uma orientação dos organizadores para evitar uma batalha sobre quem grita mais no microfone, preservando a saúde auditiva dos visitantes. Quanto aos amplos espaços de circulação, podemos ficar entre uma preocupação com a visibilidade dos expositores ou simplesmente a não ocupação total do espaço à venda para exposição. Deixo essas duas conclusões para você, leitor que também esteve por lá.
Seja como for, é inegável que a “experiência” de visitar o que tem pra ser visitado está muito melhor que na maioria dos eventos de games aqui no Brasil. Ponto para os organizadores.
Quanto às rodadas de negócios, foi destacado um bom espaço e pelo que pude ver no segundo dia, ele esteve sempre cheio, nas “mesas” de negociação. Mais um ponto para os organizadores.
No quesito palestras foram quatro palcos simultâneos (um ao lado do outro) com distinção de assentos e fones de ouvido para cada pessoa que se dispusesse a assistir, com tradução simultânea dos palestrantes. Mais um, não, mais dois pontos para os organizadores.
E finalmente os games indies, ah os games indies… O concurso do BIG se fez presente, mas quase apenas para cumprir tabela. Os jogos foram apresentados em “ilhas” centrais, mas sem aquela aglomeração tão característica dos anos anteriores. Essa aglomeração “do bem” esteve presente sim, em dois outros espaços: Panorama Brasil e Indie Área ambas cumprindo à risca o que os desenvolvedores independentes tem a mostrar ao mundo (ou pelo menos aos brasileiros) e teve muita coisa bacana nesses espaços. Mais um ponto para os organizadores.
Ainda foi possível ver jogos indies brasileiros em pelo menos mais dois espaços menores: o estande do Sebrae e da Abragames, a primeira associação das empresas brasileiras de games e que sempre esteve presente nos BIGs.
Teve mais coisas? Sim, teve uma pequena arena de e-sports, curiosidades como o jogo Doom rodando numa Air Fryer, espaço de card games, área de empregos e carreiras, muito cosplay e gritaria (como sempre) com a presença de influencers e seus fãs adolescentes. Afinal, é preciso atrair público pagante e isso essas modalidades fazem muito bem, ainda que com baixa relevância para a indústria br de games.
Ah, ia me esquecendo, teve também a participação de uma meia dúzia de representantes das grandes empresas mundiais, relacionadas aos jogos, tais como Nintendo, Epic Games, Bethesda, Roblox, Twitch e mais algumas. Fizeram a diferença? Nem de longe.
Minha conclusão: a Gamescom Latam apresentou parcialmente o que foi o BIG festival do passado, mas nem chegou perto no quesito família indie dev br. Na verdade, dá pra gente dizer que a organização acertou em prestigiar os indies, afinal eles são o futuro dos eventos presenciais (te cuida BGS), mas ainda está meio perdida nessa busca por uma identidade. Os adjetivos “grande” e “maior” são referências de tamanho e não de qualidade ou relevância. Três grandes áreas para mostrar jogos indies pode ter diluído a real força desse segmento, apenas por não concentrar o esforço. Mesmo assim merecem mais um ponto pela tentativa.
Analisando como visitante posso dizer que gostei muito do que vi: um evento amplo, sem muito barulho (dava pra conversar de boa), com games indies br a perder de vista. Se o preço disso é ter a gritaria dos adolescentes, seus influencers e um apresentador estridente de vez em quando no palco principal, então tá tudo certo.
Como desenvolvedor, atuante no mercado e eventualmente um potencial expositor eu ainda teria algumas dúvidas quanto a tirar o escorpião do bolso. O custo é muito alto para um resultado efetivo, posterior ao evento. Some-se a isso o fato de que eventos grandes de games, mundo afora, estão acabando, engolidos pela internet. Isso não invalida a oportunidade (quase única) de expor seu trabalho de forma mais ampla.
Sinal para ser visto e considerado: já vai longe o tempo no qual as empresas usavam esses eventos para lançar seus produtos. O foco agora é a produção indie, pequena, feita por gente super criativa, cheia de energia (mas pouca grana) e que a gente não vê representada na mídia em geral. Sabe o que faltou nesse evento? Uma real valorização do dev brasileiro afinal, se a feira dá valor aos negócios, não devia negligenciar os profissionais que realizam esses negócios.
Vale lembrar que o indie de hoje pode ser a franquia mundialmente famosa de amanhã.
Game Designer formado em Desenho Industrial e Comunicação Visual, em 1981 pela PUC/RJ. Foi diretor técnico e editor da revista Micro Sistemas de 1983 até 1995. Produtor do site TILT online desde 1996. Autor de vários jogos para computador, tais como Amazônia, Serra Pelada, Aeroporto 83, Angra-I, Xingu, Resgate na Serra do Roncador, Pedra Negra, e muitos outros. Criador das ferramentas de produção e programação de jogos: Sistema Editor de Adventures, Zeus, Micro Aventuras e Projeto Gênesis.