Há duas semanas falei sobre as alucinações, quando a mente cria percepções sem objeto. Hoje falarei sobre os delírios, quando o que está em jogo é o pensamento. Um delírio é uma crença fixa e inabalável, que persiste mesmo diante de provas em contrário. Para quem vivencia, a experiência é tão real quanto qualquer lembrança. Para os outros, parece impossível.
O cinema e os games frequentemente exploram o tema. Em Cisne Negro, a protagonista Nina começa a acreditar em perseguições e conspirações que fazem parte de sua deterioração psíquica. Já em Uma Mente Brilhante, acompanhamos John Nash, matemático brilhante que desenvolve delírios persecutórios e de grandeza, acreditando que era parte de uma missão secreta do governo e que códigos estariam escondidos em revistas e jornais. Em Hellblade: Senua’s Sacrifice, citado semana passada, além das alucinações, há momentos em que as ideias delirantes de Senua guiam sua jornada. Esses exemplos, sejam ficcionais ou inspirados em situações reais, ajudam a entender o impacto profundo que os delírios têm na vida de uma pessoa.
É importante destacar que não adianta tentar convencer alguém que está em um episódio delirante de que aquilo não é real usando apenas argumentos racionais. A certeza da pessoa é inabalável. Para o paciente, o delírio é tão real quanto a certeza que você, caro leitor, tem de que o seu nome é o seu nome.
Como diferenciar delírios de alucinações?
Enquanto alucinações envolvem os sentidos (ver, ouvir, sentir algo inexistente), os delírios envolvem ideias e crenças distorcidas. Muitas vezes, ambos aparecem juntos, principalmente em quadros psicóticos como a esquizofrenia.
Alguns tipos curiosos de delírios
- Delírios liliputianos e gulliverianos: o indivíduo acredita que pessoas ou objetos ao redor têm tamanhos anormais. O liliputiano envolve a sensação de que tudo é minúsculo; o gulliveriano, que tudo é desproporcionalmente grande. Os nomes vêm do livro As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Em uma das histórias, Gulliver vai parar em Liliput, uma terra habitada por pessoas minúsculas, e depois encontra seres gigantes em Brobdingnag. É quase como entrar em um livro ou filme de fantasia com características distorcidas.
- Síndrome de Capgras: a pessoa acredita que alguém próximo foi substituído por um impostor idêntico. Imagine reconhecer seu parceiro ou parente no rosto, mas ter certeza absoluta de que não é ele. Filmes como Os Invasores de Corpos trabalham exatamente com essa ideia.
- Síndrome de Fregoli: é o oposto de Capgras. Aqui, o delírio faz a pessoa acreditar que diferentes indivíduos são, na verdade, a mesma pessoa disfarçada. É como se todos os NPCs de um game fossem, na verdade, a mesma entidade que mudou de skin para enganar o protagonista.
- Síndrome de Cotard: talvez um dos mais perturbadores. A pessoa acredita que está morta, que seus órgãos não existem ou que seu corpo está se decompondo. Essa temática aparece de forma simbólica em filmes de zumbi, mas na vida real é uma experiência de intenso sofrimento.
- Delírio de referência: o indivíduo acredita que gestos, frases, músicas ou situações neutras estão sendo direcionados a ele de forma intencional. É como assistir a uma série e ter certeza de que os personagens falam diretamente sobre você. Lembro-me de um paciente que sempre dizia que um famoso apresentador da Rede Globo das tardes de Domingo falava sempre com ele e lhe mandava sinais. Este sintoma foi o que fez sua família buscar ajuda.
- Delírio erotomaníaco (Síndrome de Clérambault): a pessoa tem a convicção de que alguém, geralmente de posição social mais elevada ou famoso, está apaixonado por ela. Esse delírio já foi retratado em filmes de suspense envolvendo perseguições de celebridades.
- Delírio de infestação (ou Síndrome de Ekbom): a pessoa acredita estar infestada de insetos ou parasitas, mesmo sem nenhuma evidência física. Essa ideia aparece em algumas obras de terror psicológico, onde a sensação de algo rastejando sob a pele é usada como metáfora. Eu já tive um paciente com esse delírio, mas a história não caberia ser contada aqui, infelizmente, pois tem elementos muito pesados.
- Delírio de controle: a pessoa acredita que seus pensamentos, sentimentos ou ações estão sendo controlados por uma força externa, como máquinas, aliens ou até mesmo entidades sobrenaturais. Essa crença já foi explorada em inúmeras narrativas de ficção científica e lembra a sensação de ser manipulado por um jogador em um game. Aqui podemos lembrar de Neo, que inicialmente duvida de sua própria realidade. A ideia de que suas escolhas e percepções estão sendo manipuladas por máquinas externas é uma metáfora muito próxima ao conceito de delírio de controle.
Checkpoint final
Delírios não são apenas histórias fantásticas criadas pela mente, mas sintomas de condições médicas que precisam de cuidado. Eles podem surgir em quadros como esquizofrenia, transtorno bipolar, demências e até intoxicações por substâncias.
Na cultura pop, essas ideias servem como metáforas para explorar identidade, medo e paranoia. Mas na vida real, não devem ser romantizadas. Se você ou alguém próximo apresenta ideias fixas, estranhas e que parecem não se abalar com a realidade, é essencial procurar atendimento com um psiquiatra ou psicólogo. Assim como em um jogo de múltiplas fases, a mente pode se perder em caminhos ilusórios. A boa notícia é que sempre existe a possibilidade de encontrar a rota de volta.

José Maria Santiago, médico psiquiatra e professor de medicina, é um explorador da mente humana e um aficionado por cultura pop. Entre aulas e consultas, também encontra tempo para debater filmes, séries e games no seu podcast, o Encontroverso, onde o cérebro e o entretenimento se encontram. Especialista em fazer a ciência caber numa conversa de café e em emitir opiniões baseadas em certezas que não tem, acredita que o equilíbrio está entre a compreensão profunda da psique e uma maratona de filmes ruins bem escolhida!