Quando o diagnóstico vira identidade
Muitas vezes, quando alguém me procura no consultório, vem com uma dúvida que parece simples: “Doutor, o que eu tenho?”, “Qual meu diagnóstico?”, “Você pode me dar um laudo?”. Mas por trás dessa pergunta há algo muito maior. Há quem busque no diagnóstico uma forma de se entender, de dar nome àquilo que sente.
E isso é legítimo.
O problema começa quando esse nome, esse título, esse diagnóstico se transforma em prisão, em rótulo. Quando alguém passa a se apresentar dizendo “eu sou depressivo”, “eu sou ansioso”, “eu sou bipolar” e tudo o que vem depois parece girar em torno disso.
Eu sempre explico ao paciente que o diagnóstico é uma ferramenta, um meio que me guia em direção ao que importa: melhorar a qualidade de vida.
Não é uma sentença.
Ele serve para orientar o cuidado, para que a gente possa encontrar o caminho de volta (como eu disse e repito) à qualidade de vida. Meu objetivo nunca é que alguém saia do consultório com um rótulo, mas com a sensação de que ainda pode ser feliz, produtivo e autêntico, mesmo convivendo com desafios emocionais.
Entre ficção e realidade
Na cultura pop, é fácil encontrar personagens que acabam se definindo por aquilo que os fere. O Coringa, por exemplo, entrega-se completamente ao seu sofrimento e o transforma em identidade. Ele pauta seus comportamentos na sua distorção. Ainda no mesmo universo, Harvey Dent, outrora respeitado e admirado promotor, uma vez desfigurado em uma figura ambígua com a persona de Duas Caras, passa a usar a dualidade de uma moeda como ferramenta de suas decisões. BoJack Horseman passa anos acreditando que sua tristeza é quem ele é, e não apenas algo que sente. O próprio Batman, quando retratado jovem, usa a raiva e o desejo de impor um senso de justiça que carrega em seu sofrimento como motivo para ser o vigilante mascarado muito mais do que o órfão que sobreviveu e que precisou seguir em frente. Em contrapartida, há figuras como Tony Stark (o do MCU, principalmente) que reconhece seus traumas, mas não se resume a eles. Ele usa suas falhas como combustível para criar, inovar e, de certa forma, curar-se por meio da ação.
Esses personagens nos lembram que a linha entre viver um diagnóstico e ser o diagnóstico é muito tênue. E que o ponto de virada, na ficção ou na vida real, acontece quando a pessoa entende que o problema faz parte da história, mas não é a história inteira.
O que realmente importa
Na minha realidade profissional, o que mais me importa, em cada atendimento, é devolver à pessoa o direito de viver. De rir de novo. De sentir prazer nas pequenas coisas. De olhar para os problemas e encontrar soluções, quando estas lhe forem possíveis. Nunca prometi a um paciente que eu iria lhe dar uma vida sem problemas, pois tenho total convicção de que, se eu assim pensar, irei frustrar tanto o paciente que me procura e em mim confia quanto a mim mesmo.
O diagnóstico pode até explicar um capítulo, mas não precisa definir o livro.
Vejo a psiquiatria como um mapa e uma lanterna. De um lado, o sofrimento que trouxe o paciente até ali e o colocou num labirinto escuro, e, na saída, a vida que ele quer voltar a viver. E, no meio, há o cuidado, o acolhimento e o tratamento que só fazem sentido se ajudarem a pessoa a se movimentar. Não posso lhe transportar para a saída nem caminhar por ele, mas posso facilitar sua caminhada.
E se você for mais do que isso?
Talvez seja essa a pergunta que eu mais gostaria que ficasse. Porque você pode ter ansiedade, depressão, TDAH, transtorno bipolar, esquizofrenia, transtorno de personalidade borderline ou qualquer outro diagnóstico, mas ainda é alguém que sonha, sente, cria, se emociona, ri e ama. Como tantos personagens que enfrentam o caos, o trauma ou a dor e ainda assim encontram sentido no caminho.
Você não é o que lhe aconteceu. Nem o que foi escrito num prontuário. Você não é o que a bula diz que aquele medicamento pode tratar. Você é o autor que continua escrevendo, apesar de tudo, a própria história.
Checkpoint final
Se você chegou até aqui, pode até ser que esteja passando ou conhece alguém que esteja passando por algo que ainda não tem nome. Talvez até já tenha um diagnóstico que parece pesar mais do que deveria. Seja qual for o caso, vale lembrar: pedir ajuda é um ato de coragem, não de fraqueza.
Procurar um profissional faz parte do processo, mas confiar nesse caminho é tão importante quanto. A ajuda verdadeira não vem apenas de um código num manual de diagnóstico. Ela nasce da escuta, da construção de vínculo, da tentativa, muitas vezes lenta, às vezes cheia de recaídas, de reencontrar o que te faz sentir vivo.
Os jogos nos ensinam que checkpoints servem para recomeçar sem perder o progresso. Assim também é na vida. Buscar cuidado não significa voltar ao início, mas retomar de onde parou, com mais sabedoria e menos medo.
Então respira. O diagnóstico pode até ser parte do mapa, mas ele não é o destino. O destino é seguir jogando, vivendo com esperança, aprendizado e vontade de continuar.

José Maria Santiago, médico psiquiatra e professor de medicina, é um explorador da mente humana e um aficionado por cultura pop. Entre aulas e consultas, também encontra tempo para debater filmes, séries e games no seu podcast, o Encontroverso, onde o cérebro e o entretenimento se encontram. Especialista em fazer a ciência caber numa conversa de café e em emitir opiniões baseadas em certezas que não tem, acredita que o equilíbrio está entre a compreensão profunda da psique e uma maratona de filmes ruins bem escolhida!