Lara Croft: de musa sexualizada a heróina valente na nova série

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Não faltam estudos e pesquisas acadêmicas que avaliam o processo evolutivo visual e narrativo dos games protagonizados por personagens femininas e as adequações hoje urgentes para inserir os jogos em um contexto de respeito à figura feminina e romper com a sexualização descabida nessa representatividade digital.

Nesse texto, resgatamos alguns pontos do processo que culminou com a criação de um dos maiores ícones femininos dos games, seus equívocos e correções de rota, com o objetivo de melhor dialogar com as percepções da humanidade contemporânea – ainda que muito precise ser feito para alcançarmos uma sociedade equânime, onde meninas possam se sentir valorizadas por mais do que a estética de seus corpos e as personagens dos games não sejam objetos de desejos de jogadores carregados de testosterona.

Lara foi concebida e desenhada por Toby Gard, um designer que trabalhava para a pequena empresa britânica de games Core Design. A Core já era conhecida no mercado por um produto anterior, o game Chuck Rock, desenvolvido para o console Genesis da Sega e claramente baseado na mesma estrutura de plataforma já então bem conhecida desde o aparecimento de Super Mario Bros.

Tomb Raider também parecia seguir uma mesma trilha de concepção, com soluções aparentemente muito similares às do novo game do encanador, recém disponibilizado para o Nintendo 64, que apresentava Mario como um colorido, saltitante e espantoso personagem em 3D. No entanto, embora pareça ter se inspirado na mesma tecnologia e princípio, Lara Croft seguiria um caminho diferente, ao proporcionar uma experiência mais realística, mas nem por isso menos lúdica: Lara Croft assemelhava-se a um ser humano tão real quanto os polígonos podiam simular, e seus movimentos permitiam um grau de interação totalmente novo para os jogadores, que agora podiam saltar, correr, agarrar-se às bordas, atirar, dirigir e muitas outras ações inovadoras de mecânica, sempre em alta velocidade e muita adrenalina.

Não bastasse este fato, o game foi disponibilizado para os consoles Saturn, da Sega, Playstation X, da Sony, e para PC, o que permitiu que um número muito maior de jogadores pudesse apreciar suas acrobacias e buscas.

Mas, é claro, seria ingênuo dizer que o sucesso do game reside apenas nestes quesitos. O estrondoso sucesso de Lara Croft e Tomb Raider se deu sobretudo por uma campanha de marketing sagaz e heteronormativa, que soube explorar o melhor recurso presente no jogo: Lara, sua carismática protagonista, que ganhou a mente e o coração dos jogadores.

Toby Gard parecia saber exatamente o que pretendia desde o começo da criação e Adrian Smith, produtor de inúmeras aventuras da série, corroborou esta afirmação, ao comentar: “Ela foi desenhada por Toby Gard e eu devo dizer que o desenho original que ele fez é a mesma Lara de hoje”, como descreveu no estudo “A Case in Study: Tomb Raider” [1], e continua: “Nós sempre soubemos o tipo de game que queríamos. Volte sete anos no tempo, todos eram do tipo Tiro em Primeira Pessoa. Queríamos um título em que você tivesse mais conexão com o personagem principal. Então fomos para a Terceira Pessoa e demos mais ênfase ao personagem.”

Uma das primeiras ideias para a criação de Lara foi dar-lhe uma personalidade mais forte, como um obsessivo militar, porém a Core buscava algo mais sofisticado, saga, atlético, ágil e com certa dose de modéstia, o que levou à decisão óbvia de criar uma garota.

A “garota” em questão obteve tamanho sucesso que figurou nas capas de nada menos que a prestigiada Entertainment Weekly, Times Digital, The Face, Financial Times, The Sunday Telegraph e Details, entre outras publicações.

A figura icônica da exploradora de tumbas conquistou sucesso incontestável, cujos games ultrapassaram mais de 100 milhões de cópias vendidas em todo o mundo até 2024, segundo dados do site oficial [2], e gerando algo em torno de US$ 1,2 bilhão em receitas, de acordo com uma edição do jornal The Los Angeles Times, de maio de 2002 [3], valor que deve ser muito superior a essa marca na atualidade.

A popularidade da saga ainda hoje, mostra mais do que a sensual silhueta digital da protagonista, e o jogo oferece dinâmica e performance, seja em jogabilidade, diversão ou desafio, entre outros fatores.

A maioria dos gamers que comprou o jogo no começo parecia possivelmente interessada na figura esbelta e atlética de Lara, porém, mais do que ser uma sex symbol dos games, Lara realizava no jogo um misto de ação contínua dos shooters, a trama comum ao estilo RPG e o desafio de quebra-cabeças como visto em Prince of Persia, transportando para o 3D, muitos dos elementos de jogabilidade existentes na plataforma bidimensional dos consoles.

Os jogadores de consoles já dispunham de inovações semelhantes por meio de Mario 64 mas, para os jogadores de PC, Tomb Raider foi uma evolução fenomenal e bem-vinda, a partir de soluções criadas para jogos como Fade to Black, anterior à saga, mas que não obteve o mesmo êxito de vendas.

Além disso, o jogo fortaleceu a ideia da importância na criação e desenvolvimento de jogos com ênfase nos personagens e na trama, mais do que no desejo de matar, vigente em sucessos recentes como Wolfenstein e Doom.

Max Payne e outros games posteriores, como Enter the Matrix, são claros exemplos deste conceito, que desencadearia obras simultaneamente criticadas e elogiadas, como GTA, no qual a versão Vice City tem seu protagonista dublado pelo ator estadunidense Ray Liotta.

Toby Gard também deixou suas impressões sobre como criar um personagem de sucesso, como seguem abaixo:

  1. Um bom design – com o pessoal certo envolvido;
  2. Boa integração – Se o personagem se ajusta so game e se o game vale a pena ser jogado;
  3. Um bom plano de marketing – Para fazer com que o público queira conhecer mais sobre o personagem;
  4. Uma boa continuidade – Com brinquedos, camisetas e novas sequências de jogo no momento certo.

Muito mais há para ser dito sobre esse inovador projeto que soube se reinventar com o tempo, gerando novos conteúdos e mantendo o entusiasmo dos fãs, e a questão da representação feminina nos jogos digitais ganhou grande impulso nas últimas décadas, ressignificando a própria personagem como uma expressão dos valores sociais da atualidade.

Como afirmam Carolina de Almeida Gomes da Cruz e Francisco José Paoliello Pimenta no estudo Jogos eletrônicos, protagonistas femininas e redução de estereótipos: a série Tomb Raider [2], “a partir dos dados obtidos, é possível concluir que houve uma diminuição da representação estereotipada da protagonista em termos gerais […] Enquanto os dois primeiros jogos analisados apresentaram corpo com proporções exageradas, com roupas apelativas e nem sempre funcionais, na nova representação o corpo é mais realista, com traje sem exposições fora do contexto”.

A heroína continua atualizando a cultura de games por meio de novos projetos, a exemplo da série animada Tomb Raider: A Lenda de Lara Croft, cuja 1ª temporada acaba de chegar ao catálogo da Netflix, no último dia 10 de outubro.

[1] ZIESKE. L. A case in study: tomb raider. Disponível em: http://web.stanford.edu/group/htgg/cgi-bin/drupal/?q=node/685. Acesso em: jun. 2007.

[2] https://www.tombraider.com/news/video-games/tomb-raider-iv-vi-remastered-reveal-100-million-games-sold-and-more

[3] https://www.newspapers.com/article/the-los-angeles-times/88925532/

[4] https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&opi=89978449&url=https://www.revistas.usp.br/anagrama/article/download/85730/88497/120816&ved=2ahUKEwjlwu75lJ6JAxWXhJUCHXHnI04QFnoECCkQAQ&usg=AOvVaw3ivTIE8eP6vo-9iJXw85om

Este texto foi originalmente escrito para o blog RetroGamesBrasil, em 10 de junho de 2007, e atualizado para o QoC.

Imagem: Thomas Clement