‘Ainda estou aqui’ e ‘Ilha do Presidio’: política nos filmes e games – por Kao Tokio

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No último domingo, dia 2 de março, o Brasil assistiu a cerimônia de premiação do Oscar, estatueta criada com o objetivo de reconhecer a excelência das obras cinematográficas realizadas em solo estadunidense e outras produções globais.

‘Ainda estou aqui’, do cineasta brasileiro Walter Salles Jr., sagrou-se Melhor Filme Estrangeiro, conquistando pela primeira vez a celebrada premiação para o país.

Mais do que belas cenas e um roteiro de encanto e poesias, sãs a fluidez tensa, a desesperança e o pano de fundo sombrio de uma história verdadeira e aterrorizante que dão o tom da obra vencedora do Oscar, resgatando um pouco do que foram aqueles anos de chumbo, que muitos órfãos da arbitrariedade e da violência militar desejam ver no Brasil mais uma vez.

Corta.

Como já divulgado neste Quebrando o Controle, eu e Renato Degiovani estamos escrevendo um livro sobre a história dos games produzidos no Brasil, dos projetos bem-sucedidos àqueles menos conhecidos do público e, curiosamente, escrevia nessa semana sobre o game Ilha do Presídio, produzido por um enxuto time de jovens desenvolvedores do Rio Grande do Sul.

Na obra, ora em processo de redação e finalização, rememoro um levantamento realizado pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), indicando que ao menos 82 pessoas foram presas no local durante o regime militar, sofrendo as arbitrariedades e o desrespeito à pessoa humana que o filme de Walter Salles elegantemente mal exibe nas telas, mas deixa objetivamente registrado.

Uma das histórias mais conhecidas sobre os tenebrosos acontecimentos da ilha é o ‘caso das mãos amarradas’, que narra os suplícios do sargento Manoel Raimundo Soares, preso e torturado no Dops e posteriormente levado para a ilha:

“Às 8h da manhã, Manoel Raimundo Soares ainda sofria violência. Era queimado à ponta de cigarro, que os policiais apagavam lentamente sobre as suas carnes. Recebia pontapés e pauladas (…) foi posto no pau-de-arara. Recomeçaram as torturas do cigarro aceso. O Delegado Itamar passa a bater com os fios. Findo o tratamento, Soares parece um trapo. Ele ainda está só de cuecas, as costas a sangrar e uma das vistas fechada…Levam-no então para a sala do fiscal Olinto, chefe da guarda do DOPS. Está semi-inconsciente”, relatou Luis Renato Pires de Almeida, estudante de agronomia da UFRGS, também confinado na ilha de terror, segundo o estudo de 2008 “A escrita de si na situação de tortura e isolamento: as cartas de Manoel Raimundo Soares“, da pós-doutora pela Unicamp Susel Oliveira da Rosa.

Este, naturalmente, foi apenas um entre incontáveis casos de repressão e mortandade tornados cotidianos pelo país afora, e que jamais deveriam ter sido permitidos ou, pior, esquecidos.

O jogo produzido pelos desenvolvedores do Utopia Game Studio, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, inspirou-se na temática desta triste passagem da história do Brasil para inserir o jogador em uma atmosfera de terror, na qual desvendar a história dos acontecimentos na ilha é parte da condução narrativa, com direito a chocar-se com os horrores que não surgem pela interação com monstros e com o sobrenatural, como acontece normalmente nos games do gênero, mas pela própria perspectiva da crueldade humana registrada em cada ambiente de opressão e torturas.

Como declarou Eduarda Lacerda, artista 2D da criação do time gaúcho, o gênero Terror estava saturado à época do desenvolvimento do game, levando-os a buscar outras formas de impactar os jogadores, por um caminho mais subjetivo e psicológico. “Percebemos que o menos é mais. A nossa proposta é deixar que o próprio jogador se assuste, e que ele crie o terror psicológico dentro dele”, sugeriu, em bate-papo com Lou Cardoso, para o jornal Correio do Povo.

A experiência com o jogo pode ser perturbadora e trazer, como resultado, uma ampla reflexão sobre os porões do Brasil, onde o assassinato daqueles que pensam diferente foi pauta de um grupo que governou com ódio e violência, quesitos que jamais deveriam ser permitidos ou tolerados na esfera pública e na mediação de relações, independente das paixões e objetivos.

Há uma parcela dos fãs de jogos digitais no Brasil que insiste em afirmar que os games não deveriam tratar de temas políticos e que estas abordagens atrapalham a diversão do gameplay.

No capítulo do livro que eu e Renato estamos escrevendo, finalizo com as seguintes palavras:

“Se as pessoas que trabalham com jogos digitais no Brasil vivem alardeando que ‘Game é Cultura’, faz-se necessário termos clareza que muito da cultura brasileira segue sendo apagada ou voluntariamente esquecida por agentes que buscam reescrever a história com cores que favoreçam seus interesses pessoais e políticos, algo que nossas instituições não deveriam permitir jamais”.

“Os games precisam ser instrumentos de diálogo com a sociedade e, como sabemos, toda sociedade é, desde as Ágoras da Grécia Antiga, essencialmente política”.

Parabéns a Walter Salles pelo filme maravilhoso, vencedor da estatueta, e ao time de desenvolvedores da Utopia Games, pela sensibilidade em tratar com maturidade um tema tão urgente e complexo em seu game de estreia, lançado em 2016.

Que venham mais jogos com a capoacidade de resgatar os horrores do passado trazendo esclarecimento sobre nossa histórioa para as novas gerações.

E sem anistia para torturadores.

Imagem: fotomontagem