Depois de um longo período de maquinações, que inclusive, levaram à mudança do nome desta coluna (tchau, Mundo Bits, bem-vinda Manifesto Gamer!), vamos iniciar uma série, em 4 partes, tratando do conceito da Jornada do Herói com o mundo dos videogames.
Como vocês já devem ter percebido, adoro o magnânimo G.K. Chesterton e dele, mais uma vez, veio a inspiração para escrever. Escreveu o gênio inglês: “Os velhos contos de fada fazem do herói um ser humano normal; suas aventuras é que são surpreendentes. Elas o surpreendem porque ele é normal.”
Não poderia haver gatilho melhor para vincular com a ideia de Joseph Campbell da Jornada do Herói. O vínculo entre a citação de Chesterton e tese de Campbell será tratado nesta série, vinculando tudo, é claro, ao mundo dos jogos.
Espero que gostem!
Parte 1 – O Herói que Nasceu de um Pixel: Do Atari ao Início das Aventuras Digitais
Se existisse uma fórmula mágica para criar histórias que atravessam gerações, essa fórmula teria nome e endereço — e, para surpresa de absolutamente ninguém, ela seria encontrada através dos seguintes elementos: uma pessoa comum, numa caverna escura, cheia de enigmas e com certeza protegida por um dragão.
O que encontramos nesta caverna (ou espaço sideral, ou floresta, ou num deserto), são mistérios e profecias, armas mágicas ou de uma tecnologia inexplicável, sempre com enigmas e plot twists. E o ponto mais importante dessas histórias: o herói, uma pessoa comum, chamada a um desafio além de suas possibilidades, guiado sempre por um mestre sábio e com a finalidade de combater um mal maior.
Em suma, estamos falando da Jornada do Herói.
O Ciclo do Herói: Da Antiguidade às Telas de Nossas Casas
Antes de calcular quantos bits cabem em uma bravura, vale perguntar: o que é, afinal, essa Jornada do Herói? Joseph Campbell, aquele professor que gostava de comparar Homero com Yoda, nos deu o seguinte mapa: um protagonista comum é chamado para uma aventura, enfrenta desafios, se transforma e retorna mudado.
Ulisses, na Odisseia de Homero, demorou vinte anos para voltar pra casa após o fim da Guerra de Troia (contada na Ilíada, também atribuída a Homero), combatendo seres místicos e desafios sobre-humanos, enquanto o Mario Bros cumpre jornada de roteiro com mesma estruturação (obviamente, infinitamente mais simples), em vinte minutos nas mãos de um jogador experiente e quase psicopata (mas, justiça seja feita, quantas vezes ele teve de repetir o mesmo castelo?).
Você já viu esse roteiro em praticamente tudo: em livros que enfrentam dragões de papel, em filmes onde até o roteiro precisa de salvação (“Star Wars”, alguém?), e, claro, nos videogames.
O paradoxo? Quanto mais antigo é o mito, mais moderno parece quando você o encontra em um lugar improvável — como dentro de um cartucho do Atari.
Adventure, Pitfall! e o Herói Anônimo da Era Atari
Na década de 80, a missão mais heroica era convencer nossos pais de que “só mais cinco minutos” realmente eram cinco minutos. E foi nessa época quase pré-histórica dos games que nasceram os primeiros heróis digitais: figuras geométricas sem nome, roteiro e, por vezes, sem nem mesmo um rosto.
Adventure, do Atari 2600, é praticamente a Odisseia contada em três ou quatro cores. O protagonista? Um quadradinho, do tipo que jamais faria cosplay em convenção. A missão? Enfrentar dragões que se parecem mais com patos enfurecidos do que com criaturas dignas de lenda.
Não tinha cutscene, nem diálogos; o silêncio era o texto, e cada jogador escrevia sua própria épica na cabeça. E é exatamente nesta simplicidade que a complexidade surgia. Quanto mais fértil sua imaginação, mais elaboradas eram as formas de você enxergar aqueles pixels primordiais como uma verdadeira aventura, digna do título.
Em Pitfall!, que tinha elementos gráficos mais complexos – dando uma ideia mais linear de “história”, se é que podemos chamar assim – não adiantava esperar pistas elaboradas do narrador ou frases marcantes: o perigo surgia sob a forma de jacarés, cipós e a obrigação de zerar antes da janta. Mas pelo menos já era um boneco que pulava e se agarrava em cipós, diferente do quadrado simplório de adventure.
O paradoxo brota fácil: quanto menos tínhamos em narrativa, mais preenchíamos com imaginação. Era a era do herói anônimo, onde todo mundo era protagonista e coautor de sua própria mitologia doméstica.
Quando o Controle era Simples… e a Imaginação, Complexa
Quanto mais rudimentares os consoles, mais complexas (e pessoais) eram as histórias que vivíamos. Não havia manual de instruções para a fantasia: cada respingo de pixel era potencial para aventura. “Você está vendo um quadrado?” — talvez, mas eu estou salvando um reino.

No meio digital, a Jornada do Herói começava de forma tímida, mas essencial: o chamado à aventura era silencioso, e a volta para casa era marcada pelo chamado dos nossos pais — e não pelo canto das sereias.
Literatura, Cinema, Videogames: O Ciclo se Repete
Assim como em “O Senhor dos Anéis”, onde atravessamos mil perigos juntamente com Frodo e a Sociedade do Anel para destruir Um Anel, nos jogos de Atari a epopeia se fazia no microcosmo dos pixels.
O cinema popularizou o herói arquetípico que a literatura o eternizou, Mas só os videogames nos deram a experiência paradoxal de ser herói sem roteiro — um Ulisses que cria sua própria Ítaca a cada partida reiniciada. (Esta reflexão pode ser adaptada para todo e qualquer jogo existente que tenha narrativa)
Convite à Reflexão: Você Já Foi um Herói Pixelado?
Quantas jornadas já viveu apenas segurando um controle? Qual é a diferença entre salvar um mundo de pixels e enfrentar o cotidiano real?
Talvez, se G.K. Chesterton tivesse tido acesso aos videogames e tentado zerar “Adventure” ele teria comentado algo tipo: “O herói não é quem vence todos os desafios, mas quem insiste em começar o jogo de novo.” (A inspiração aqui não foi do Príncipe do Paradoxo, mas do Garanhão Italiano Rocky Balboa, outro personagem que se enquadra no arquétipo estudado por Joseph Campbell).

E assim fechamos este primeiro capítulo: na próxima vez que ligar o seu console, lembre-se — talvez a verdadeira Jornada do Herói não esteja nos gráficos, mas no que cada um de nós inventa entre um pixel e outro. Afinal, quanto mais primitivo era o jogo, mais fértil deveria ser nossa imaginação.
No próximo capítulo:
Exploraremos o momento em que os heróis ganharam nomes, frases, e finalmente puderam dizer o que sentiam (ou quase isso). Do NES ao SNES, a jornada deixa de ser silenciosa e vira prosa épica — ou, ao menos, um texto com emoção de manual de instrução japonês.
E aí, já viveu uma Jornada do Herói jogando Atari? Ou a sua aventura começou em outra tela? Compartilhe nos comentários — afinal, todo herói precisa contar sua história.

Advogado, graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (2001) e Pós-Graduado em Direito Privado pela Universidade de Fortaleza (2003). Colecionador de jogos eletrônicos. Diretor Vice-Presidente da União Cearense de Gamers – UCEG. Sócio da Quebrando o Controle Entretenimento, diretor de administrativo, produtor e roteirista de jogos eletrônicos. É colunista do site de jogos eletrônicos www.quebrandocontrole.com.br e titular das colunas Manifesto Gamer e Contracapa e apresentador do programa Hidden Gems. É colunista do portal Achou Gastronomia e titular da coluna Vem Pra Mesa.