Por Um Punhado De Bits: Era Uma Vez

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Se aceitarmos que todo jogo “tem” uma história (narrativa embutida) precisamos aceitar também que “contar” essa história é parte essencial desse jogo. Será mesmo?

Durante toda a minha vida digital joguei inúmeros games, por tempos prolongados até zerar os ditos cujos. Apenas como exemplo, zerei Duke Nukem, que foi um estrondoso sucesso de público nos primórdios da era 3D (anos 90). Jogar aqui implica não apenas single player como também montar campanhas multiplayers na rede do estúdio, para combates online. Tudo antes mesmo da internet virar o que ela é hoje.

Não lembro de, em nenhum momento, me preocupar com a “história” do jogo. O barato era mesmo a porradaria em 3D. Só pra constar e para quem, como eu, não se ligou na narrativa embutida, vai aqui um resumo:

“Logo após os acontecimentos de Duke Nukem 2, no século XXI, Duke está em sua nave espacial voltando para Terra, para tirar férias. Assim que ele se aproxima de Los Angeles, a sua nave é atingida e derrubada por hostis desconhecidos”.

“Ao enviar um sinal de socorro de sua nave, Duke descobre que Los Angeles foi atacada por Aliens, e que o departamento de polícia (LAPD) foi totalmente transformado em mutantes. Com os seus planos arruinados de uma vez, Duke pressiona o botão ‘ejetar’ e embarca na tentativa de parar a invasão e salvar a terra.”

Clássico, não é mesmo? Eu nem me toquei que o cenário era Los Angeles. Fez alguma diferença não saber disso na época? Provavelmente, não. Então, qual é de fato a relevância da narrativa embutida? A resposta mais perto do alvo seria algo como “depende do jogo”.

Me dê uma arma, me coloque num cenário e me aponte um alvo para matar ou destruir (não vale os três patetas). Libere a porradaria e, pronto, horas e mais horas de puro entretenimento. Não importa se o personagem é um macho branco, alfa, tóxico, loiro, hetero e pegador ou um menine foca de cabelos azuis e unhas esmaltadas, uma de cada cor. Isso são firulas, embora nos jogos atuais configurar o personagem seja parte da diversão, por questões identitárias ou mesmo por pura zoação.

Péra, estamos perdendo o foco aqui. Voltando para a história…

Na minha adolescência (lá nos anos 60), tínhamos duas “histórias” que eram usadas como pegadinha ou entretenimento. Uma delas era baseada numa famosa campanha publicitária antiga de um elixir para despertar o apetite das crianças e que terminava a peça dizendo que aquele produto era o “segredo da vida”.

Inventaram então uma narrativa que começava invariavelmente com a pergunta: você conhece o segredo da vida? Pois então, um cientista resolveu descobrir esse tal segredo da vida e disseram para ele que a resposta estava nas pirâmides do Egito. Ele pegou ônibus, navio, trem e avião até que chegou nas pirâmides e depois de alguns contratempos descobriu que a resposta estava na torre Eiffel, em Paris. Pegou ônibus, navio, trem e avião até que chegou na capital da França.

A narrativa se desenrola nessa estrutura, sempre enfatizando “pegando ônibus, navio, trem e avião” mas indo aos locais mais inusitados, ao gosto do narrador, até que, percebendo a ansiedade do ouvinte, ele dá o desfecho: o segredo é o tal elixir.

Toda a história é construída para provocar essa necessidade, do ouvinte, de saber o segredo da vida. Esse é o papel da narrativa: envolver o jogador a ponto dele se sentir apto a tomar o lugar do personagem e partir para o descobrimento, formando assim uma narrativa emergente, que será sempre única, ainda que o mesmo jogador se aventure novamente desde o começo.

Daria ou não um tema para um “Duke Nukem like” sobre aventuras e descobrimentos, inclusive com fases distintas. E nem precisaria de porradaria, mas apenas situações a serem resolvidas.

A segunda pegadinha era sobre o desejo de uma criança possuir uma “bolinha vermelha”. Ela pede ao pai que lhe dê uma, no seu aniversário. O pai varre todas as lojas da cidade e não encontra o objeto. Isso acontece na medida que a criança cresce e todos os anos a mesma coisa se repete. Até que o pai morre e, já adulto, essa missão passa para seu filho mais velho. Já bem idoso, numa cama de hospital, em seu leito de morte, o pedido pela bolinha vermelha é feito como o seu último desejo ao filho. Mais uma vez, nada.

Vendo que o fim se aproxima, o filho indaga ao pai o motivo de tal pedido e quando o personagem vai finalmente revelar, ele falece. O tempo decorrido da “história” e seus floreios existe para aguçar a curiosidade do ouvinte e, claro, no clímax ocorrer a frustração de não saber os motivos que levavam aquela pessoa a querer a tal bolinha vermelha.

Nesse modelo, a “quest” é fartamente ilustrada ao gosto do narrador, buscando o envolvimento do ouvinte, o que nos leva a um modelo mais parecido com uma narrativa interativa, ou seja, com o foco na bolinha vermelha, o narrador daria ao ouvinte opções ou caminhos para seguir adiante.

Em ambos os casos, a história e como ela é contada tem total relevância para despertar o interesse em jogar, bem como manter a imersão funcionando o tempo todo. Podemos dizer que a narrativa embutida é a “alma” do jogo e, portanto, deve ser feita com a maior competência possível.

Isso não quer dizer que Pacman não tenha uma história ou que ela seja irrelevante. O exposto aqui apenas mostra que a mecânica do jogo (e seu visual) tem precedência no despertar do interesse dos jogadores. A experiência completa (narrativa + mecânica) é sempre mais recompensadora e colorida.

Em tempo: nunca me passou pela cabeça que os quatro fantasmas do Pacman (os Galaxians), que escaparam de uma prisão, tinham nomes: Blinky, Pinky, Inky e Clyde.

Então, se quiser criticar, elogiar, xingar, falar palavras de incentivo, mandar pix pra ajudar na aposentadoria, etc, o canal mais eficiente é o velho e surrado e-mail: renato@tilt.net. Sinta-se livre pra descer o sarrafo porque nesta altura do campeonato, meu amigo, eu já sofri todas as críticas positivas e negativas que um gamedev pode sofrer.

Imagem: Microsoft Creator